É de manhã. O sol entra com toda a sua confiança por entre as cortinas, totalmente abertas, da janela. A janela. A única fonte de luz no quarto. O quarto. Perdido na imensidão da velha casa. A velha casa. Velha e antiquada, serve de refúgio ao amor proibido de dois amantes perdidos. Perdidos no tempo dos tempos, a eternidade.
Passo a mão pelos móveis, sinto o pó. Um pó imenso. As memórias voltam em catadupa. A minha mente transforma-se num frenesim de imagens, sons, sensações. Volto atrás no tempo.
Quanto tempo terá passado?
Décadas.
Décadas de tristeza, de desculpas perdidas, de sonhos dispersos pelos tempos, de mágoas. Tantas mágoas... Sim, nunca te consegui perdoar. Porque me deixaste? Porque não confiaste? Porque não me deixaste te amar até ao fim? Porque desististe? Parece que a minha cabeça se alinhou nos porquês agora ... Porque preferiste morrer na guerra longe de mim, sozinho? Porque não escolheste morrer nos meus braços?
Imagino-te sozinho, com o vazio e a escuridão a aproximarem-se, desta vez, de verdade, para todos os tempos .
Lágrimas. Choro? Passaram-se décadas e ainda choro. Era um amor verdadeiro. O meu verdadeiro amor. Tu eras e sempre serás o meu verdadeiro amor.
Ele sabe disso. Ele lê-o nos meus olhos, na minha expressão.
E. E mesmo assim, ele continua ao meu lado. Como sempre. Agora é a vez, mais uma, de não me conseguir perdoar. Devo-lhe tanto e, depois de tantos anos, nunca me consegui entregar completamente, verdadeiramente. Não da forma como me entreguei a ti.
Percorro o quarto até janela. Desta consigo ver os campos verdes e brancos, cobertos por malmequeres. Tal como da última vez. Olha para baixo e vejo-o. À minha espera ao lado da carrinha. Sempre à minha espera.
Mais uma vez não tenho coragem de ir à tua campa. Uma campa sem corpo, debaixo de um sobreiro. Parece um sonho, não parece? Todos os anos, esta hora parece um sonho. Na verdade, é um ritual. Um ritual para que voltes para mim. Desço as escadas, outrora esplendorosas, e lembro-me da primeira vez que te vi, do alto da escadas.
Olho em volta e lembro-me do salão nesse dia, mesas pomposamente recheadas de comidas exuberantes e doces lasciviosos. Uma banda tocava um delicioso jazz. Toda gente falava com toda gente.
E foi assim, nesta imensidão de sons, sensações e ideias que te dirigiste a mim e me convidaste para dançar. Para dançar numa pista vazia e imaginária. Dançámos, dançámos toda a noite.
Saio pela porta principal e, as recordações continuam a inundar-me.
No fim, conduziste-me até ao sobreiro, disseste-me o teu nome e roubaste-me um beijo.
E assim, a minha vida começou.
Parto outra vez e, como sempre não olho para trás.
Para o ano voltarei. Voltarei até ao fim dos meus dias.